O que nos leva à errância quando bem podíamos ficar quietos? – Mia Couto

O que nos leva à errância quando bem podíamos ficar quietos? Essa pergunta suscita outras perguntas. Algumas delas são próximas da minha área de saber: Está o desejo da viagem inscrito nos nossos genes? Faz parte da nossa natureza? Acredito que a essência do homem é não ter essência. Por isso, quando nos interrogamos sobre o gosto de deambular, as respostas devem ser encontradas na nossa história. É nesse terreno que entenderemos a origem e o percurso desse gosto. Nesse terreno entenderemos o nosso tão antigo apetite pela viagem. A nossa espécie foi nômade durante centenas de milhares de anos. Se aceitarmos que nascemos como subespécie há 250 mil anos, temos 12 mil anos de sedentarização para 240 mil de nomadismo. Quase 90% do nosso tempo fomos caçadores, deambulando pelas savanas de África.

Durante toda a infância e adolescência da nossa espécie, a nossa primordial vocação foi a caça. Daí a necessidade intrínseca e constante de partir, vasculhar, converter o espaço em território de coleta e de perseguição da presa. A ligação ao lugar sempre foi provisória, efêmera, durando enquanto duravam as estações e a abundância. Nós não sabíamos tomar posse. E não sabíamos tomar posse da terra com receio, talvez, de sermos possuídos pela terra. Sobrevivemos porque fomos eternos errantes, caçadores de acasos, visitantes de lugares que estavam ainda por nascer.
A caça não se resume ao ato de emboscada e captura. Implica ler sinais da paisagem, escutar silêncios, dominar linguagens e partilhar códigos. Implica aprender brincando como fazem os felinos, implica ganhar o gosto e o medo pelo susto, implica o domínio da arte da surpresa e do jogo do faz-de-conta. Nós produzimos a caça, mas foi, sobretudo, a caça que nos fabricou como espécie criativa e imaginativa. Durante milênios, apuramos uma cultura de exploração do ambiente, uma relação inquisitiva com o espaço. Durante milênios, a nossa casa foi um mundo sem moradia. É por isso que é estranho nos perguntarmos hoje sobre o gosto de vaguear. O tema do nosso encontro deveria, de fato, ser invertido. E a pergunta seria: Por que temos gosto em ficar parados em vez de deambularmos constantemente? Ficar é a exceção. Partir é a regra. O Homo sapiens sobreviveu porque nunca parou de viajar. Dispersou-se pelo planeta, inscreveu a sua pegada depois do último horizonte. Mesmo quando ficava, ele estava partindo para lugares que descobria dentro de si mesmo. Quando nasceu a agricultura, ganhámos o sentido do lugar. A partir de então, fomos dando nomes aos sítios, adocicámos o chão. Entre a paisagem e a humanidade criaram-se laços de parentesco. A terra divinizou-se, tornou-se mãe. Pela primeira vez dispúnhamos de raiz, morávamos numa estação perene. O chão já não oferecia apenas um leito. Era um ventre. E pedia um casamento duradouro.

Paradoxalmente, o sedentarismo inaugurava a ideia de exílio. Viajar passou a ser um apetite que necessitava de ser cerceado. Semear era preciso. As terras passaram a ser objeto de posse. A ideia de fronteira inscreveu-se como silenciosa lei. Mais além, começavam os domínios dos outros. O mundo passou a ter um “dentro” e um “fora”, um “cá” e um “lá”. E a viagem passou a comportar riscos acrescidos. Cresceu o medo de não mais voltar. A primeira epopeia da literatura – a história de Ulisses – é a narrativa de um regresso. A exaltação do retorno sublimava o receio da partida.

É possível que tenha sido assim. Não se pode saber ao certo. Talvez esta distinção de tempos seja demasiado construída, demasiado literária. Possivelmente as coisas foram mais complexas, mais misturadas. Somos todos mestiços de caçadores, coletores e semeadores.

O que importa é que a relação com a viagem nunca foi uma relação objetiva, fria, isenta de fantasia. Mesmo os antigos caçadores, esses que viviam em viagem, mesmo esses cumpriam rituais para se afeiçoarem ao desconhecido. Antes de chegarem ao destino faziam deslocar a sua imaginação coletiva. Do mesmo modo que pintavam nas grutas os animais que iam caçar, eles fantasiavam os lugares distantes, vestiam-nos de crenças, convertiam-nos em narrativas. Afinal, mesmo nas grutas, sempre tivemos agências de viagem para domesticar o inesperado e espicaçar a aventura.

E foi assim: o mais remoto deserto, a mais impenetrável floresta foram sendo povoados com os nossos fantasmas. E hoje todos os lugares começam por ser nomes, lendas, mitos, narrativas. Não existe geografia que nos seja exterior. Os lugares – por mais que nos sejam desconhecidos – já nos chegam vestidos com as nossas projeções imaginárias. O mundo já não vive fora de um mapa, não vive fora da nossa cartografia interior.

Mia Couto em E se o Obama fosse africano?