O espírito livre, cada vez mais livre – Nietzsche

Em determinado momento, pode acontecer finalmente entre os súbitos clarões de uma saúde ainda incompleta, ainda instável, que para o espírito livre, cada vez mais livre, comece a se revelar o enigma dessa grande libertação que até então havia esperado, obscuro, suspeito, quase intocável, em sua memória. Se, durante muito tempo, mal ousava perguntar-se: “Por que tão afastado? Tão só? Renunciando a tudo o que eu respeitava? Renunciando a esse próprio respeito? Por que essa dureza, essa desconfiança, esse ódio contra minhas próprias virtudes?”

– Agora ele ousa, pergunta em voz alta e até já ouve alguma coisa como resposta. “Tu devias tornar-te senhor de ti, senhor de tuas próprias virtudes. Antes, elas eram senhoras de ti, mas elas não podem ser senão teus instrumentos ao lado de outros instrumentos. Devias ter o domínio sobre teu pró e teu contra e aprender a arte de agarrá-los e dispensá-los segundo teu objetivo superior do momento. Devias aprender a tomar o elemento de perspectiva que há em toda a avaliação – o deslocamento, a distorção e a aparente teleologia dos horizontes e tudo o que diz respeito à perspectiva; e também a grande parte da ignorância a respeito dos valores opostos e de todas as perdas intelectuais, com as quais cada pró e cada contra se faz pagar.

Devias aprender a captar a injustiça necessária que subsiste em todo pró e contra, a injustiça como inseparável da vida, a própria vida como condicionada pela perspectiva e sua injustiça. Devias sobretudo ver com teus próprios olhos onde é que a injustiça é sempre maior, a saber: onde a vida tem seu desenvolvimento mais mesquinho, mais restrito, mais pobre, mais rudimentar e onde, no entanto, não pode deixar de se tomar ela própria por finalidade e medida das coisas e, por amor à sua subsistência, esmigalhar e pôr em causa, furtiva, mesquinha e incessantemente o que é mais nobre, maior, mais rico – devias ver com teus olhos o problema da hierarquia e a maneira pela qual o poder, o direito e a amplitude da perspectiva crescem juntos à medida que se elevam.” “Devias” – basta, o espírito livre sabe doravante a qual “deve” ele obedeceu e também qual é agora seu poder, o que só agora – lhe é permitido…

Nietzsche em Humano, demasiado humano.