Brasília | Zygmunt Bauman

Para os experimentalistas mais interessados num trabalho bem feito do que nos efeitos sobre aqueles que seriam afetados por suas ações, Brasília foi um imenso laboratório com pródigo financiamento no qual vários ingredientes de lógica e estética podiam ser misturados em variadas proporções, observando-se então a reações de forma não adulterada e selecionando-se a composição mais agradável.

Como sugeriam as pressuposições do estilo Le Corbusier de modernismo arquitetônico, podia-se desenhar em Brasília um espaço na medida do homem (ou, para ser mais exato, de tudo o que é mensurável no homem), portanto um espaço do qual a surpresa e o acidente fossem eliminados e ao qual não pudessem voltar.

Para seus moradores, porém, Brasília revelou-se um pesadelo. Logo foi cunhado por suas infelizes  vítimas o conceito de “brasilite”, nova síndrome patológica de que Brasília era o protótipo e o mais famoso epicentro até então. Os sintomas mais notáveis de “brasilite”, na opinião geral, eram a ausência de multidões e ajuntamentos, as esquinas vazias, o anonimato dos lugares, as figuras humanas sem rosto e a entorpecente monotonia de um ambiente desprovido de qualquer coisa que intrigasse, excitasse ou causasse perplexidade. O plano de Brasília eliminava a  possibilidade de encontros fortuitos em quaisquer lugares que não os poucos especificamente destinados a reuniões com um propósito. Marcar um encontro no único “fórum” projetado, a enorme Praça dos Três Poderes, era o mesmo, segundo uma piada corrente, que marcar um encontro no deserto de Gobi. Brasília era, talvez, um espaço perfeitamente estruturado para a instalação de homúnculos nascidos e alimentados em tubos de ensaio, para criaturas compostas de tarefas administrativas e definições legais. Era certamente (pela menos na intenção) um espaço perfeitamente transparente para aqueles encarregados da tarefa de administrar e para aqueles que definiam o conteúdo dessa tarefa. Com certeza, podia ser um espaço perfeitamente estruturado também para os residentes ideais e imaginários que identificassem a felicidade com uma vida sem problemas, uma vez que não comportava situações ambivalentes, nenhuma necessidade de escolha, nenhuma ameaça de risco ou possibilidade de aventura. Para todos os demais revelou-se um espaço desprovido de tudo o que é verdadeiramente humano – tudo o que dá sentido à vida e faz valer a pena viver.

Poucos urbanistas consumidos pela paixão modernizadora tiveram um campo tão vasto de ação como o que se ofereceu à imaginação de Niemeyer.

A lição que os planificadores puderam aprender com a longa crônica dos sonhos grandiosos e dos abomináveis desastres que combinam para formar a história da arquitetura moderna foi que o segredo primordial de uma “boa cidade” é a oportunidade que ela dá às pessoas de assumir responsabilidade por seus atos “numa sociedade histórica imprevisível” e não “num mundo onírico de harmonia e ordem predeterminada”. Quem quer que resolva operar a invenção de um espaço urbano guiado exclusivamente pelos preceitos da harmonia estética e da razão faria bem em ponderar primeiro que “os homens jamais podem se tornar bons simplesmente seguindo as boas ordens ou o bom plano de outros”.

Zygmunt Bauman em Globalização: As consequências humanas.