E regressamos à questão da pessoa humana. Ao longo da história, as operações de agressão aos outros começam curiosamente por despessoalizar esses mesmos outros. Por assim dizer, esses — os inimigos — não são pessoas humanas como nós. A primeira operação na guerra dos Estados Unidos contra o Vietnã não foi de ordem militar. Foi de ordem psicológica e consistiu em desumanizar os vietnamitas. Eles já não eram humanos: eram “amarelos”, eram seres de outra natureza sobre os quais não haveria problema de ética em lançar bombas, o agente laranja e napalm. O genocídio no Ruanda foi aqui perto e não muito distante no tempo. Comunidades que conviviam em harmonia foram manipuladas por elites criminosas ao ponto de se ter cometido o maior massacre da história contemporânea. Se antes de 1994 perguntássemos a um tutsi ou a um hutu se acreditava que aquilo poderia acontecer no seu país, eles declarariam que isso é inimaginável. Mas sucedeu. E sucedeu porque a capacidade de produzir demônios é ainda muito grande nos países. Quanto mais pobre é um país, maior é a capacidade de se destruir a si mesmo. A partir de abril de 1994 e durante cem dias consecutivos, mais de 800 mil tutsis foram assassinados pelos seus compatriotas hutus. Machados e catanas foram usados para chacinar 10 mil pessoas por dia, o que dá uma média de dez pessoas por minuto. Nunca na história humana se matou tanto em tão pouco tempo. Toda esta violência foi possível porque se tinha trabalhado para provar, uma vez mais, que os outros não eram pessoas humanas. O termo escolhido pela propaganda hutu para falar dos tutsis era cockroaches, baratas. A matança estava assim isenta de qualquer objeção moral, estava-se matando insetos e não pessoas humanas, compatriotas falando a mesma língua e vivendo a mesma cultura.
– Mia Couto em E se Obama fosse africano?