José Saramago em “Este mundo de injustiça globalizada”.

E a democracia, este milenário invento de uns atenienses ingênuos para quem ela significaria, nas circunstâncias sociais e políticas específicas do tempo, e segundo a expressão consagrada, um governo do povo, pelo povo e para o povo?

Ouço muitas vezes argumentar as pessoas sinceras, de boa fé comprovada, e as outras que essa aparência de benignidade tem interesse em simular, que sendo embora uma evidência indesmentível o estado de catástrofe em que se encontra a maior parte do planeta, será precisamente no quadro de um sistema democrático geral que mais probabilidades teremos de chegar a consecução plena ou ao menos satisfatória dos direitos humanos. Nada mais certo, sob condição de que fosse efetivamente democrático o sistema do governo e de gestão da sociedade a que atualmente vimos chamando democracia. E não o é. É verdade que podemos votar, é verdade que podemos, por delegação da partícula de soberania que se nos reconhece como cidadãos eleitores e normalmente por via partidária, escolher os nossos representantes o parlamento, é verdade, enfim, que da relevância numérica de tais representações e das combinações políticas que a necessidade de uma maioria vier a impor sempre resultará um governo. Tudo isto é verdade, mas é igualmente verdade que a possibilidade de ação democrática começa e acaba aí. O eleitor poderá tirar do poder um governo que não lhe agrade e pôr outro no seu lugar, mas o seu voto não teve, não tem, nem nunca terá o efeito visível sobre a única e real força que governa o mundo, e portanto o seu país e a sua pessoa: refiro-me, obviamente, ao poder econômico, em particular a parte dele, sempre em aumento, gerida pelas empresas multinacionais de acordo com estratégias de domínio que nada tem que ver com aquele bem comum a que, por definição, a democracia aspira. Todos sabemos que é assim, e contudo, por uma espécie de automatismo verbal e mental que não nos deixa ver a nudez crua dos fatos, continuamos a falar de democracia como se tratasse de algo vivo e atuante, quando ele pouco nos resta que um conjunto de formas ritualizadas, os inócuos passes e os gestos de uma espécie de missa laica. E não nos apercebemos, como se para isso não bastasse ter olhos, de que os nossos governos, esses que para bem ou para o mal elegemos e de quem somos portanto os primeiros responsáveis, se vão tornando cada vez mais em meros “comissários políticos” do poder econômico, com a objetiva missão de produzirem as leis que a esse poder convierem, para depois, envolvidas nos açúcares da publicidade oficial e particular interessada, serem introduzidas no mercado social sem suscitar demasiados protestos, salvo as certas conhecidas minorias eternamente descontentes…

Que fazer? Da literatura a ecologia, da fuga das galáxias ao efeito estufa, do tratamento do lixo, aos congestionamentos do tráfego, tudo se discute neste mundo. Mas o sistema democrático, como se um dado definitivamente adquirido se tratasse, intocável por natureza até a consumação dos séculos, esse não se discute. Ora, senão estou em erro, se não sou incapaz de somar dois e dois, então, entre tantas outras discussões necessárias e indispensáveis, é urgente, ante que se nos torne demasiado tarde, promover um debate mundial sobre a democracia e as causas de sua decadência, sobre a intervenção dos cidadãos na vida política e social, sobre as relações entre os Estados e o poder econômico e o financeiro mundial, sobre aquilo que afirma e aquilo que nega a democracia, sobre o direito a felicidade e a existência digna, sobre as misérias e as esperanças da humanidade, ou falando com menos retórica, dos simples seres humanos que a compõem, um por um e todos juntos. Não há pior engano do que o daquele que a si mesmo se engana. E assim é que estamos vivendo.

José Saramago em Este mundo de injustiça globalizada.