As religiões soberanas, estão entre as maiores causas que mantiveram o tipo “homem” num degrau inferior – Nietzsche

Como se comportam então essas duas religiões principais, frente ao excedente de casos malogrados? Elas procuram conservar, manter em vidas, tudo que se possa manter; mais ainda, sendo religião para sofredores, tomam o partido deles por princípio, dão razão a todos os que sofrem da vida como de uma doença, e desejariam obter que qualquer outro sentimento da vida fosse considerado falso e tornado impossível.

Por mais que se estime esse cuidado atencioso e conservador, na medida em que, além dos outros tipos de homem, ele se aplicou àquele mais elevado, que quase sempre foi também o mais sofredor: no balanço total as religiões soberanas, as que até agora tivemos, estão entre as maiores causas que mantiveram o tipo “homem” num degrau inferior – conservaram muito do que deveria perecer. Temos coisas inestimáveis a lhes agradecer; e quem seria tão rico em gratidão, que não se tornasse pobre em face de tudo o que os “homens espirituais” do cristianismo, por exemplo, fizeram até hoje pela Europa! E no entanto, quando davam consolo aos sofredores, ânimo aos oprimidos e aos desesperados, sustento e apoio aos dependentes, e quando atraíam os interiormente destruídos e os que se tornavam selvagens para os monastérios e penitenciárias da alma, afastando-os da sociedade: que mais precisavam fazer para trabalhar, de consciência tranquiliza e sistematicamente, na conservação de tudo que era doente e sofredor, ou seja, trabalhar de fato e verdadeiramente na degradação da raça europeia.

Supondo que se pudesse abarcar, com o olho irônico e distanciado de um deus epicúreo, a comédia singularmente dolorosa do cristianismo europeu, ao mesmo tempo grosseira e sutil, creio que não haveria limites para o espanto e o riso: pois não parece que apenas uma vontade dominou a Europa por dezoito séculos, a de fazer do homem um sublime aborto?

Nietzsche em Além do bem e do mal.