Deus come? – Milan Kundera

Quando era garoto e folheava o Velho Testamento para crianças, ilustrado com gravuras de Gustave Doré, via nele o Bom Deus em cima de uma nuvem. Era um velho senhor, tinha olhos, nariz, uma barba comprida e eu dizia comigo mesmo que, como ele tinha boca, devia comer. E se comia, devia ter intestinos. Mas essa ideia logo me assustava, porque apesar de pertencer a uma família pouco católica, eu sentia que a ideia dos intestinos de Deus era sacrílega. Sem o menor preparo teológico, espontaneamente a criança que eu era então já compreendia, portanto, que existe incompatibilidade entre a merda e Deus e, consequentemente, percebia a fragilidade da tese fundamental da antropologia cristã segundo a qual o homem foi criado à imagem de Deus. Das duas uma: ou o homem foi criado à imagem de Deus e então Deus tem intestinos, ou Deus não tem intestinos e o homem não se parece com ele.

Milan Kundera em A insustentável leveza do ser.