Alfredo Moffatt é autor de obras como Psicoterapia do Oprimido (Ed. Cortez, 1981), Terapia de crise (Ed. Cortez, 1982) e En caso de angústia, rompa la tapa [Em caso de angústia, quebre a capa] (Buenos Aires, Astralib, 2003). Foi discípulo de Pichon-Rivière, um dos principais responsáveis pela formação da Psicologia Social argentina. Ele esteve algumas vezes no Brasil, nos anos 80, fazendo palestras em universidades e desenvolvendo experiências de psicodrama em comunidades pobres, chegando a trabalhar em colaboração com Paulo Freire.
Moffatt falou para Revista Sem Terra sobre sua experiência e sua produção teórica como psicoterapeuta, desenvolvidas há décadas, principalmente entre as classes populares.
Silvia Adoue
Marco Fernandes (militante do MTST e doutorando em Psicologia Social na USP)
(colaborou Lizandra Guedes)
De Buenos Aires
Alfredo Moffatt é autor de obras como Psicoterapia do Oprimido (Ed. Cortez, 1981), Terapia de crise (Ed. Cortez, 1982) e En caso de angústia, rompa la tapa [Em caso de angústia, quebre a capa](Buenos Aires, Astralib, 2003). Foi discípulo de Pichon-Rivière (ver box), um dos principais responsáveis pela formação da Psicologia Social argentina. Ele esteve algumas vezes no Brasil, nos anos 80, fazendo palestras em universidades e desenvolvendo experiências de psicodrama em comunidades pobres, chegando a trabalhar em colaboração com Paulo Freire. Moffatt falou para Revista Sem Terra sobre sua experiência e sua produção teórica como psicoterapeuta, desenvolvidas há décadas, principalmente entre as classes populares.
Revista Sem Terra – Quais as inovações da Psicologia Social de Pichon-Rivière em relação à Psicanálise?
Pichon-Rivière fez uma operação que era imprescindível para o pensamento psicanalítico no momento atual: levar o “divã” para a rua. Não apenas para considerar o contexto social, mas também para incluir a grupalidade. A relação do paciente sozinho com o psicanalista leva à submissão.
A Psicanálise foi adequada na época da repressão à sexualidade. Além do mais é um modelo muito ligado ao da família tradicional pequeno-burguesa e machista. Onde a mulher é um sujeito de segunda categoria, que sente inveja do pênis. Quando, na realidade, o homem é que teria de invejar o útero da mulher que permite conceber um filho! Mas a repressão sexual já não existe mais como no começo do século XX, e o sexo não é mais o problema central. Para nós, importa mais o problema do tempo, do “projeto de futuro”.
Pensemos em Freud, na passagem do séc. XIX para o XX. Ele morou 40 anos na mesma rua! As mudanças eram muito lentas naquela época. O tempo não era problema. Isso se altera depois das duas guerras mundiais, que destruíram todo esse mundo “ordenado e feliz”, esse mundo das certezas. Na Europa, surge o pensamento existencial.
Hoje, nos interessa, sobretudo, o problema do “projeto de vida”. Ou da falta de um projeto de vida. A incerteza daquilo que virá. A América Latina vive uma brutal injustiça social, que marginaliza, deixa fora do sistema. Fora do trabalho e, portanto, fora do tempo, fora do projeto de vida.
Hoje, nos interessa, sobretudo, o problema do “projeto de vida”. Ou da falta de um projeto de vida. A incerteza daquilo que virá. A América Latina vive uma brutal injustiça social, que marginaliza, deixa fora do sistema. Fora do trabalho e, portanto, fora do tempo, fora do projeto de vida.
Porque veja, o desemprego interrompe o projeto de futuro, porque o desempregado não tem inserção laboral e não só perde a grana, perde o horário, perde o papel, perde a metade de sua identidade, porque Freud dizia que ser saudável é poder amar e trabalhar. Agora, imagine os milhões de jovens hoje, que nem ao menos têm acesso a um primeiro trabalho, que por sua vez seria a possibilidade de ter uma companheira(o), ter um filho. Enfrentam um vazio existencial insuportável. Portanto, aparece a violência, o alcoolismo, a droga.
Por esses motivos, era necessária uma mudança de paradigma. Pichon-Rivière começou essa mudança. Mas faltou um olhar mais existencial.
ST – Qual seria essa mudança de paradigma que você propõe?
O ser humano é, na realidade, uma “história”. Sua identidade é uma “história”. Não há um “aparato psíquico”. É muito mecanicista esse modelo. Freud fez o que podia fazer naquela época. Mas só se explica que, 100 anos depois, ainda se siga com um modelo assim, porque a teoria terapêutica se converteu em religião. Quando uma teoria terapêutica ultrapassa seu momento histórico, inevitavelmente se transforma em religião. Atualmente é um ritual: o paciente entra, dá a mão, se deita no divã. Isto é, abandona o corpo. E o psicanalista, como se contasse com visão de raios X, lê o mais inconsciente.
Nós aceitamos isso de procurar “pistas” na infância, mas apenas para fazer o projeto de vida. A psicanálise não tem concepção de futuro. É apenas o passado, só com a palavra e só com o indivíduo. Nós fazemos três aberturas, mudando estes três focos: do indivíduo ao grupo; da palavra ao corpo, à ação; e do passado para o futuro, para a mudança. Grupo, ação e mudança são a vida.
Por outro lado, uma pessoa falando do passado é o que convém ao sistema. É óbvio isso, porque não há mudança. A pessoa não adoece porque não entende seu passado. Ela adoece porque não pode enfrentar o futuro.
A mudança de paradigma parte por inverter a pergunta. Não perguntar pela loucura. A loucura não existe, existe a saúde. Não existe o frio, o frio é a falta de calor. Não existe a morte, a morte é falta de vida. O doente é aquele que não aprendeu a saúde. Por exemplo, o melancólico é aquele que não aprendeu a dizer adeus, ficou colado ao passado.
O tempo é a gente que produz, e o Eu existe no tempo. Mas você não pode perguntar ao Eu: “o quê é o tempo?”. Porque seria o equivalente a perguntar a um peixe: “o quê é a água?”. E ele responderia: “Água? Que água?”. Aí, quando o peixe é retirado da água, ele percebe (risos). O Eu também, quando é retirado do tempo num surto psicótico, ele pensa: “Ah, o tempo!”. No surto psicótico se vê em forma aguda o sentimento de solidão e paralisação do tempo. Estamos sozinhos e isolados. No fundo, não existe o tempo. Existe a lembrança do que aconteceu e a lembrança do que vai acontecer.
Em seu livro Psicoterapia do oprimido, de 1974, você estudou o fenômeno de algumas igrejas, seitas de curandeiros, comunidades evangélicas, etc. Chamou a estas de “psicoterapias populares”. O que você aprendeu analisando este fenômeno?
Há um grande “buraco”, que é a angústia em relação à morte, e, no caso das classes populares, agravada pela falta de condições mínimas de existência. Por isso, existem as “rolhas” para tapar os “buracos”, que são a igreja católica, a evangélica, as seitas etc. Importa menos que as “rolhas” sejam falsas, e sim, que o “buraco” é verdadeiro. Então, é preciso haver “rolhas”. Se não há assistência médica, procuro um curandeiro, que me cura por meio da sugestão. Como as histéricas de Freud…
Nosso povo sempre se utilizou de suas próprias psicoterapias. A psicanálise, por exemplo, não funciona para as classes populares não porque não se pode pagar pela consulta, mas fundamentalmente porque a maioria absoluta dos psicanalistas – que são de classe média para cima – tenta curar a partir da visão de mundo e do universo simbólico de sua classe. As suas concepções (de sexo, morte, amor, família) são muito diferentes das concepções que organizam a realidade para o nosso povo. E são essas concepções, esse universo simbólico, que operam nas “psicoterapias populares”. Isso eu pude constatar freqüentando algumas dessas igrejas, comunidades, seitas etc., e analisando-as.
Contudo, isso não quer dizer que parte da estrutura teórica da psicanálise seja inútil. Pelo contrário: somente através de uma reinterpretação das técnicas analíticas, a partir da cultura popular, podemos resgatar o melhor das técnicas psicoterapêuticas.
Por outro lado, as “psicoterapias populares” também estão cheias de aspectos regressivos. Por exemplo: em geral, há um endeusamento das figuras que “curam”, seja o “mão-santa”, o curandeiro ou o pastor; funcionam mais como uma terapia de apoio, sem resolver o que está acontecendo, no fundo, com o “irmão-paciente” e passam rapidamente um verniz de esperança; em suma, trata-se quase sempre de uma transformação no nível pessoal, meramente adaptativa ao sistema, mas nunca é uma situação de tomada de consciência de sua situação de classe e da origem real dos problemas, que são as brutais condições de vida.
Partindo dessas considerações, nasce a proposta da “Peña Carlos Gardel”, que você descreve no livro, não é? Como foi a experiência da construção de uma terapia alternativa, a partir da “peña”, no hospício de Buenos Aires, o Borda, nos anos 70? (“peña” é um evento que reúne inúmeras práticas festivas populares na Argentina).
Começou devagarinho, com um churrasco. Depois, com uma vitrola. E eles já tinham feito um gato de luz. Porque tudo era clandestino. No fundo do Borda (hospício). Era subversivo. Era uma “Sierra Maestra”. E eu estava alucinado com essa imagem. Então, no sábado, era a festa. As lingüiças eram doadas por um frigorífico. Roubavam lenha da cozinha durante a semana. Em três meses, já fazíamos assembléias da comunidade, onde todos decidiam o que íamos fazer e como íamos fazer.
Decorávamos o ambiente, na sombra de uma árvore. Formávamos grupos, que eram rodas de chimarrão, grupos de dança, de pintura, entre outros. Havia atividades simultâneas, pra que se pudesse escolher o que fazer de acordo com o estado de espírito: quem estava mais melancólico, se juntava pra tomar chimarrão. Aqueles mais eufóricos, dançavam…Grupos de cooperativas de trabalho, que faziam alguns artesanatos para vender, durante a semana, e ganhavam uma graninha. E fizeram a praça do Borda: vinte psicóticos transformados em pedreiros.
Fazíamos viagens para fora do hospício. Fomos para uma manifestação massiva (a posse do presidente Héctor Câmpora, em 1973), onde estavam os companheiros guerrilheiros, os “montoneros”. E nós, com um cartaz que dizia: “Hospital Neuropsiquiátrico Borda. Presente!” E os rapazes, “guerrilheiros ferozes”, nos perguntavam, morrendo de medo: “Tchê, são tranqüilos?” (risos). Restituíamos a civilidade. Fizemos um mastro grande e subíamos a bandeira. E nas datas pátrias tocávamos o hino, subíamos a bandeira e declarávamos: “território liberado”. E por aí os psiquiatras não passavam, contornavam. Porque aí, toda vez que passava, tinha de demonstrar se você era são ou se era louco.
Não recebíamos nada. Usávamos o nosso tempo livre. Nada disso era reconhecido pelo hospital. Era aceito porque a universidade e a imprensa apoiavam. Quando vieram os militares, saímos quinze dias antes e nos escondemos, pois éramos considerados comunistas, perversos, os piores. E…peronistas. Impossível ser popular sem ser peronista.
Foi uma aventura belíssima: muito amor. E havia uma força do mesmo grupo que transmitia e recebia muito contato: eram companheiros “de dentro” e companheiros “de fora”. Inclusive, companheiros “de dentro” que podiam sair, se transformavam em parte da equipe. E o que o amor produzia era esperança de futuro, que é a saúde.
Essa experiência, com os internos do Borda, gerou outras experiências para pessoas que não estavam internadas, como os “bancaderos”, não é? O que são os “bancaderos”?
O “bancadero” tem 25 anos. Atendeu 40 mil pacientes. E os psicólogos nunca receberam. É trabalho solidário. E quando terminou a ditadura, começamos com os “bancaderos”. “Bancar” seria, em português, algo como “segurar as pontas”. Um espaço solidário para compartilhar a angústia. Roda de chimarrão, psicodrama. Chegamos a uma casa destruída, sem profissionais, sem dinheiro, sem licença…Treinei uns 40 assistentes por 4 meses, em “primeiros socorros” psicológicos. Primeiro, com técnicas de contenção, só falando, sem qualquer mobilização. Depois, acrescentamos o psicodrama. Consertamos a casa, de 15 quartos, com os “pacientes”, em autogestão comunitária. Depois de trabalhar, os que vinham neuróticos, fazíamos uma roda para dizer o que havíamos sentido. Então, um depressivo, que se considera a pessoa mais inútil do mundo, mexia com tijolos, concertava o chão, colocava um cano, e dizia: “eu consegui fazer isto!”. E se curavam por meio da reparação. Além do mais, vínhamos da noite negra da ditadura. Era como uma primavera.
O “bancadero” era: “curai-vos uns aos outros”. E eram 300 assistidos por semana, 70 assistentes. Uma instituição marginal, nunca teve licença da Secretaria de Saúde Pública. Fazíamos verdadeiros carnavais de 300 pacientes, onde se incorporavam os terapeutas, dançando. Mas, quando se voltava à roda de chimarrão, se restituíam os papéis. Para estar no caos, é preciso muita organização.
Qual a contribuição que essa psicologia social pode ter para a transformação da sociedade, para a construção do socialismo?
Uma vez, numa marcha, um companheiro “do povo”, peronista, me disse: “somos feios, mas somos muitos!”. E isso é verdade, por isso as coisas vão se consertar. Vocês sabem o quanto eram feios aqueles que tomaram o Palácio das Tulherias (em 1871, na Comuna de Paris)? Ou os que tomaram o Palácio de Inverno (em 1917, na Revolução Russa)?
O fato é que o povo faz os movimentos, e nós, como psicólogos, podemos sim, desenvolver algumas ferramentas e métodos sobre como tomar melhor o Palácio das Tulherias…