Se Narciso se encontra com Narciso
e um deles finge que ao outro admira
(para sentir-se admirado),
o outro pela mesma razão
finge também
e ambos acreditam na mentira.
Para Narciso o olhar do outro,
a voz do outro,
o corpo é sempre o espelho
em que ele a própria imagem mira.
E se o outro é
como ele outro Narciso,
é espelho contra espelho:
o olhar que mira reflete
o que o admira
num jogo multiplicado
em que a mentira
de Narciso a Narciso
inventa o paraíso.
E se amam mentindo
no fingimento que é necessidade
e assim mais verdadeiro que a verdade.
Mas exige, o amor fingido,
ser sincero o amor
que como ele é fingimento.
E fingem mais os dois
com o mesmo esmero
com mais e mais cuidado
– e a mentira se torna desespero.
Assim amam-se agora se odiando.
O espelho embaciado,
já Narciso em Narciso não se mira:
se torturam se ferem
não se largam que o inferno de Narciso
é ver que o admiravam de mentira.
– Ferreira Gullar é um poeta, crítico de arte, biógrafo, tradutor, memorialista e ensaísta brasileiro e um dos fundadores do neo-concretismo.