Modos de ver a bíblia – Ênio César Pimenta

Existem meios diferentes de se ver o mundo. Acho que foi Drummond que, num poema, dizia que “as verdades são muitas”. Podemos entender as coisas por um prisma científico/filosófico, também podemos entendê-las com base em nossas experiências pessoais, portanto, de um modo empírico ou mesmo interpretá-las a partir de um ponto de vista religioso, mítico/teológico.

Pra ilustrar, alguém pode entender que vai chover por causa do encontro da massa de ar frio com outra de ar quente; ou porque quando o vento vem no sentido contrário daquela montanha é sinal de chuva; ou então porque “Nosso Sinhô” ouviu as preces do povo em aflição. E não há nada nesse mundo que tire de qualquer um desses “intérpretes” o sentido de verdade que ela tem pra ele. Portanto, misturar uma coisa com a outra só é possível enquanto as diferentes afirmações são co-incidentes, como no exemplo. Se os entendimentos forem contrários, o argumento científico nunca convencerá o religioso e o religioso nunca convencerá o científico, por exemplo.

O que me parece improdutivo é misturar essas coisas. Não dá para tomar o texto religioso sob o prisma filosófico-científico. A bíblia não é um livro lógico e não tem a pretensão de sê-lo. O primeiro teólogo cristão´, Tertuliano, deixou isso muitíssimo claro ao afirmar “credo quia absurdum” – ou seja – creio porque é absurdo, ou mais claramente, “Eu preciso crer exatamente porque não posso entender”. Parafraseando a liturgia católica, “eis o mistério da fé”: Ou se aceita a bíblia com seu caráter dogmático ou ela nunca fará sentido. Toda tentativa de enfiar a bíblia dentro de uma lógica aristotélica cartesiana nada mais é do que falsificação – forçar peças quadradas em encaixes redondos.

A bíblia tem por objetivo evidente “satisfazer” exatamente as demandas não supridas pela razão: um começo incriado de tudo; uma justificativa transcendental tanto para a vida quanto para os valores morais.

E este objetivo os judeus e cristãos procuram alcançar do mesmo modo com que sempre fez o ser humano desde “priscas eras”. A bíblia é a construção mítica de um determinado povo pra ilustrar e dar sentido às suas experiências. Não é, em absolutamente nada, diferente da mitologia dos gregos, dos egípcios, dos saxões, das tribos africanas ou de qualquer outra. Só teve mais elementos para elaboração e, por isso mesmo, mais “ingredientes” que estas outras. Por isso tanta carnificina entre outros tantos absurdos: A bíblia não é a transcrição dos planos de um ser superior, apenas o relato mítico da vida “Humana demasiadamente humana”.

Prova disso é fácil de se levantar. Quem tiver a curiosidade de pesquisar a história dos judeus, verá que “Deus” muda de personalidade de acordo com o momento histórico vivido por aquelas pessoas: um deus interventor, juiz direto nos tempos de Moisés, Davi ou Salomão; um deus distante e misterioso nos tempos de escravidão no Egito e, principalmente, na Babilônia. É evidente que o mito do Gênesis é perfeito, se visto “contrario senso”: os homens (e os judeus não são diferentes) criam deuses à sua imagem e semelhança.

Quanto a Nietzsche, acho que não falo bobagem ao sugerir que o ponto que ele questionou foi a moralidade judaico cristã; o modo com que o credo foi construído de modo a imbuir em todo homem uma “má consciência”, um sentimento de culpa e de necessidade de punição por sua própria natureza humana. A estrutura interna teológica do judaísmo ou cristianismo não eram alvos de sua crítica, a não ser com o fim certo e específico de demonstrar o quanto a moral, a cultura judaico cristã é responsável pelo sofrimento, pela fraqueza e o aniquilamento do homem.

O além-do-homem será aquele que verá a si mesmo e a humanidade como ser natural, desamarrado do pecado original e da “moral escrava”.